1 de março de 2007

Filme com final feliz

Levado pela curiosidade dos Óscares, decidi ir ver ontem à noite ao saudoso Quarteto, onde não entrava há vários anos, o filme Entre Inimigos (The Departed), de Martin Scorsese. Tratou-se de um regresso às origens. Antes de mais, pelo despertar proporcionado pelo animatógrafo da Rua Flores do Lima para o fascinante mundo da sétima arte.

Memoráveis ficaram as maratonas ali passadas no aniversário do cinema, algures no Outono, em que cada sala, apinhada de gente, exibia vários filmes seguidos a preços reduzidíssimos. Numa dessas vezes, consegui mesmo cometer o feito de assistir à última sessão e abandonar o escurinho do cinema à luz do meio-dia.

O Quarteto abriu portas em 21 de Novembro de 1975, tendo sido gerido até 1999 pelo apaixonado Pedro Bandeira Freire, cinéfilo inveterado. Actualmente, a gestão do cinema está a cargo da empresa Carvalho & Pagará, Lda., conforme está escrito nos ingressos, cujo preço num dia normal é de quatro euros. Outrora local de frequência obrigatória, o primeiro multiplex do país sofreu as agruras da proliferação de mais e melhor oferta, e não acompanhou a exigência da procura quanto a assistir à projecção de um filme com condições técnicas superiores e numa sala a condizer.

O progresso parece não ter passado por ali, mas no ar sente-se a magia nostálgica e cheira-se a decadência do local, de tal modo que até chega a ser tocante. O mesmo símbolo: o nome grafado num pequeno pedaço de fita. "Quatro salas, quatro filmes" é ainda a frase que se lê no enorme letreiro que encima a cobertura das largas portas de entrada. Mantém-se o familiar café e esplanada no hall.


Anunciada às 21:45, a senhora da bilheteira apressa-se a comunicar que a sessão começa 15 minutos mais tarde. Expostas em vitrinas, as sinopses dos filmes em exibição são desbotadas folhas A4 imprimidas da Internet. Os próprios cartazes a anunciar as películas, estão encaixados toscamente à pressão, de modo a caberem naquele exíguo espaço que também informa os horários.

Electrónica para anunciar a sala e o título dos filmes é coisa que não existe. Por baixo do Entre Inimigos, a lembrar as distinções, há quatro estatuetas que parecem recortadas de revistas por crianças. Perto da hora, soa o gongo e a luz vermelha pisca a dar o toque a reunir para entrar no respectivo compartimento. Não há muita gente e talvez por isso ninguém aparece à porta para recolher os bilhetes. Apenas a empregada do bar deita o olho por detrás do balcão a controlar a cena.

Lá dentro, depois de subir os degraus, a cortina marca a ténue divisão entre a escada e a sala propriamente dita, ainda forrada por paredes de alcatifa, ou coisa parecida, e onde se mantêm as avermelhadas poltronas almofadadas de outros tempos, imunes às vertiginosas tendências actuais da arquitectura de interiores.


O filme começa. O barulho das bobinas é ensurdecedor e o som parece tirado de um disco de vinil mal tratado. Horizontalmente, a imagem não está centrada e um bocado da parte de cima aparece em baixo. Mas alguém, certamente habituado a estes filmes, levanta-se prontamente para avisar o projectista, cuja salinha situa-se logo ali ao lado, e o problema fica resolvido.

Às 23:20 (confirmei a hora a seguir), o filme pára, acendem-se as luzes e na tela as imagens do cada vez mais convincente Leonardo DiCaprio ou do sempre fabuloso Jack Nicholson são substituídas pela enigmática palavra intervalo em letras garrafais. Saem os viciados do fumo e os incontinentes do mictório. Quinze minutos volvidos, de novo o mergulho escuro. Já passa da meia-noite e meia quando tudo acaba.

Há lugares, como o Quarteto, com alma dentro. Que nunca mudam, ou mudam pouco, e nem por isso perdem o encanto próprio. Ainda bem. Possivelmente vou lá voltar. E sobre o filme, afinal o motivo que deu origem a esta prosa, considero exagerada a atribuição do título de melhor filme do ano.

7 comentários:

triss disse...

Lembro-me bem das sessões duplas no Quarteto.... e do intervalo:-)

"com alma dentro" gostei

já percebi que achas que o filme não merecia o óscar, mas é um granda filme ou quê!! :-)

José Nuno Pimentel disse...

No caso das maratonas, não eram sessões duplas, mas cinco ou seis filmes em cada sala a partir da meia-noite :)

E claro que é um grande filme, mas daí até levar o prémio...

SC disse...

Gosto muito do Quarteto, aquele bar, aquele ambiente. Mas também não vou lá muito, é um facto.

W. V. D. disse...

lembro-me bem das noitadas do Quarteto e das suas paragens para aproveitar o Bar
Ainda não vi o filme mas recomendo os Diamantes de Sangue apesar de ser muito pesado

Bolacha Maria disse...

Ainda não vi, mas estou muito curiosa..Qt ao Quarteto, são lugares especiais é certo, mas deprime-me tanta decadência...

triss disse...

essas maratonas, e sessões duplas eram na época do Springfellows (bolas lá estou eu a falar dos anos 80!)

José Nuno Pimentel disse...

Aconselho uma sessão revivalista... :)

w.v.d.: Também já vi o Blood Diamond e também recomendo!

Triss: Ai os anos 80, ai ai...