22 de maio de 2009

A luta continua

Já vai algo atrasado, mas ainda assim segue na mesma o postado.

O 3 de Maio de 1808 em Madrid: Os Fuzilamentos na Montanha do Príncipe Pío faz parte das 15 obras-primas do Museu do Prado (Madrid), entre as quais se encontram também As Meninas (Diego Velázquez), Homem com a Mão no Peito (El Greco) e O Jardim das Delícias (Hieronymus Bosch, ou simplesmente El Bosco para os espanhóis).

Está exposta mesmo ao lado de outra relativa ao mesmo tema – O 2 de Maio de 1808 em Madrid: A Luta com os Mamelucos. Em baixo, transcrevo alguns dos momentos finais da obra Um Dia de Cólera, de Arturo Pérez-Reverte. Em 285 páginas, aborda os acontecimentos desse fatídico dia, desde as primeiras horas de 2 de Maio à madrugada seguinte, numa excelente tradução de Helena Pitta e que assenta bem no quadro pintado pelo Goya. Mais informações sobre o livro e o assunto podem ser encontradas na página do livro na Internet – recomendo vivamente a quem ler o dito ou tiver interesse.

«(…) A chuva salpica tudo na escuridão. São quatro da manhã e ainda é noite cerrada. Diante do quartel do Prado Nuevo, num descampado da montanha do Príncipe Pío, duas lanternas postas no chão iluminam, na penumbra e à contraluz, um grupo numeroso de silhuetas agrupadas junto de um talude de terra e de uma cerca: quarenta e quatro homens manietados individualmente, aos pares ou em cordões de quatro ou cinco ligados a uma mesma corda. Com eles, entre o soldado dos Voluntários do Estado Manuel García e o bandarilheiro Gabriel López, o chispero [N. da T.: nome pelo qual eram conhecidos os moradores dos bairros altos de Madrid: Maravillas, San Antón, Barquillo] Juan Suárez observa com receio o pelotão de soldados franceses formados em três filas. São marinheiros da Guarda, disse García, que devido ao seu ofício conhece os uniformes. Cobertos com barretinas sem viseira, os Franceses trazem à cintura sabres de gala e protegem da chuva os fechos de pederneira. A luz das lanternas faz brilhar os capotes cinzentos, reluzentes de água.
– O que se passa? – pergunta Gabriel López, apavorado.
– Passa-se que se acabou – murmura, lúcido, o soldado Manuel García. Muitos se apercebem do que estás prestes a acontecer e caem de joelhos, suplicando, amaldiçoando ou rezando. Os erguem ao alto as mãos amarradas, apelando à piedade dos Franceses. Por entre o clamor das súplicas e maldições, Juan Suárez ouve um dos presos – único sacerdote entre eles – rezar em voz alta o Confiteor [Eu me confesso], seguido por algumas vozes trémulas. Outros, menos resignados, contorcem-se nas suas amarras e tentam investir contra os verdugos.
– Filhos da puta!... Gabachos [N. da T.: nome depreciativo pelo qual os Franceses eram conhecidos em Espanha] filhos da puta! Alguns guardas afastam presos, empurrando-os com as baionetas contra o talude e a cerca. Outros, nervosos com a gritaria, começam a disparar sobre os mais agitados. Ouvem-se descargas aqui e ali, e os clarões iluminam rostos irados, expressões desfiguradas pelo pânico ou pelo ódio. Começam a cair os homens, isolados ou num amontoado confuso. Ouve-se uma ordem em francês e a primeira fila de soldados com capotes cinzentos levanta ao mesmo tempo os fuzis, aponta, e uma descarga cerrada abate o primeiro grupo colocado diante da cerca.
– Estão a matar-nos!... A eles!... A eles! Alguns desesperados, muito poucos, atiram-se contra as baionetas francesas. Há quem tenha partido as cordas e levante os braços desafiadores, avance alguns passos ou tente fugir. A golpes de baioneta ou à coronhada, os guardas empurram outro grupos e os presos avançam às cegas, espavoridos, pisando corpos. Num instante, a segunda fila de capotes cinzentos substitui a primeira, ouve-se uma ordem, e um novo rosário de tiros, cujo resplendor se fragmenta e multiplica nas bátegas de chuva, salpica a cena. Caem mais homens a monte, ceifados de chofre gritos, insultos e súplicas. Agora os Franceses retrocedem um pouco para darem mais espaço, e ecoam os estampidos de uma terceira descarga, cujos clarões se reflectem, vermelhos, nos regueiros de sangue que correm sob os corpos caídos, misturando-se com a água no chão. Amarrado a Manuel García e Gabriel López, Juan Suárez, que foi empurrado contra o talude e obrigado a ajoelhar-se à coronhada e a ferroadas de baioneta, tropeça nos mortos e agonizantes, escorrega na lama e no sangue. Entre a chuva que lhe corre pela cara, olha atordoado para as silhuetas cinzentas que erguem de novo os fuzis, apontando. Teme de frio e de medo.
Feu! (…)»

19 de maio de 2009

Fátima, cerveja e tremoços

No programa Os Contemporâneos, da RTP 1, existe um espaço em que o desconcertante Bruno Nogueira faz perguntas desconcertantes a gente que encontra na rua sobre os mais variados temas da actualidade e, claro está, habilita-se a receber algumas respostas desconcertantes.

A que se segue aconteceu no domingo e versou mais ou menos assim:
– Era capaz de ir a pé a Fátima?
– Quê? Eu? Hum... Se ainda fosse ali à Sagres, a Vialonga [Fábrica da Central de Cervejas]... Mergulhava para dentro de um pipo daqueles grandes e só vinha ao de cima de vez em quando para pedir tremoços!

12 de maio de 2009

A real feiura

Quando Francisco de Goya y Lucientes retratou A Família de Carlos IV em 1800, pouco tempo depois de ter sido nomeado pintor real da corte de Espanha, certamente estava longe de pensar que, em pouco tempo, aquele pomposo rapazola vestido de azul que aparece em primeiro plano do lado esquerdo, Fernando VII, iria passar de herói aclamado e desejado pelo povo a monarca absolutista, repressor cruel dos movimentos liberais.

Chegou ao poder em 1808, ano em que começou a Guerra da Independência contra a França de Napoleão e na sequência da abdicação forçada de seu pai. Por esta altura, do outro lado da fronteira, em Portugal, também se combatia a tropa imperial tricolor, mas a monarquia toda zarpara já para o Brasil, deixando os gauleses literalmente “a ver navios”, expressão tornada conhecida pelo facto de o general Junot, estratega da primeira invasão francesa em solo pátrio, ter entrado em Lisboa quando a soberba frota lusitana navegava ainda as águas do Tejo em direcção a Terras de Vera Cruz.

Nenhum monarca europeu tinha alguma vez pisado outro território que não o Velho Continente, quanto mais governar à distância, mas, no meio de outros factores igualmente importantes, a fuga da realeza, ainda assim, terá contribuído decisivamente para a manutenção da independência da coroa portuguesa. Entre os fugitivos régios contava-se a infanta espanhola Carlota Joaquina e que se pode ver de perfil, escondida, apenas com a face esquerda da cara à mostra e do lado oposto ao próprio Goya – cujo aparecimento atrás à esquerda, junto da enorme tela, contém clara referência a outro famoso quadro presente no Museu do Prado, em Madrid, As Meninas, de Diego Velásquez, pintor que, aliás, muito admirava.

Filha de María Luisa de Parma, figura central do quadro – o que sugere ser ela a verdadeira líder do reino vizinho, e não o seu marido –, a então Rainha de Portugal, por casamento com D. João VI, tinha nessa altura 25 anos e, tal como a sua mãe, a beleza não era o seu forte. Abundam as descrições: «Megera horrenda e desdentada, criatura devassa e abominável em cujas veias corria toda a podridão do sangue Bourbon, viciado por três séculos de casamentos contra a natureza», segundo o historiador Oliveira Martins; «ossuda, com uma espádua acentuadamente mais alta do que a outra, uns olhos miúdos, a pele grossa que as marcas das bexigas [assim do tipo da cara do Bryan Adams] ainda faziam mais áspera, o nariz avermelhado. E pequena, quase anã… Alma ardente, ambiciosa, inquieta, sulcada de paixões, sem escrúpulos e com os impulsos do sexo alvoroçados», noutra descrição.

E ainda: «Olhos pequenos e desiguais. Nariz quase sempre inchado e vermelho. Boca guarnecida de maus dentes, uns enegrecidos, outros amarelos, dispostos obliquamente. Pele áspera e curtida. Para cúmulo da feiura, tinha sempre espinhas em supuração. Os braços, que usava nus, eram chatos, ossudos e, acima de tudo, muito cabeludos». Tudo isto não a impediu de ter bastantes amantes, mas, claro está, era a rainha e nada se nega a sua majestade, mesmo que putativa, ou reputada puta.

Numa cena do filme Os Fantasmas de Goya (2006), de Milos Forman, que aborda esta parte da vida do artista e no qual Javier Bardem tem mais um desempenho notável – embora não vista a pele do pintor espanhol, interpretado por Stellan Skarsgård –, Goya aparece a dada altura a fazer o retrato a cavalo da altiva María Luisa, progenitora de Carlota, ou melhor, num suporte de madeira a imitá-lo.
– Como quer que monte?, pergunta a rainha.
– Como deseja ser lembrada pela História?, devolve o mago do pincel.
– Assim, tal qual como sou: jovem e bela!

Mais à frente na película, quando Goya destapa finalmente a tela em ocasião solene perante Carlos IV e María Luisa, a reacção dos soberanos é sintomática – abandonam imediatamente a sala indignados e sem tecer qualquer comentário. Como se pode averiguar tanto em cima como ao lado, aqueles eram precisamente dois dos atributos em avantajada míngua na real senhora e pintura não faz milagres.

Isto lembrou-me também aquela anedota, algo machista mas com piada, em que o marido chega à noite a casa complemente emborrachado, depois de uma noitada de copos com os amigos e, num assomo de sinceridade provocado pelo excesso de álcool no sangue, diz para a mulher:
- Xi… Tu és mesmo muito feia!
- E tu estás perdido de bêbado, riposta ela.
- Ah, mas a mim amanhã passa-me…

Bom, tudo isto para dizer que, ao vivo e a cores, como tive a oportunidade e a felicidade de comprovar, os quadros – há muitos outros portentosos, de autores diversos e fora do tema retratista – são simplesmente magníficos!

Nota: As descrições da Carlota Joaquina foram retiradas do excelente e didáctico livro Frases que Fizeram a História de Portugal, da autoria de Ferreira Fernandes e João Ferreira, A Esfera dos Livros, 2006

7 de maio de 2009

Porcalhota ao fundo

Éramos o país das rotundas, somos cada vez mais também o dos centros comerciais. Pobres de alguns de nós, agora que abriu o Dolce Vita Tejo ali para os lados da Amadora, originalmente chamada de Porcalhota, certamente terra de boa gente.

São 122 mil metros quadrados, 297 lojas, a enorme Kidzania – espaço para crianças – e 11 salas de cinema, num espaço "equivalente a mais de 12 campos de futebol", como salienta o Público sobre o maior shopping do burgo. Tudo isto e nove mil lugares de estacionamento disponíveis. Espero sinceramente nunca lá meter os calcantes!

De acordo com o recém-nascido diário I, «à porta do centro comercial Dolce Vita Tejo, que hoje foi inaugurado, dormiram 300 pessoas. Sónia e Bruno foram os primeiros. (...) Ela, grávida de oito meses, dormiu no chão como todos os outros. Ele veio acompanhá-la. “Não a podia deixar sozinha. Ela queria vir de qualquer maneira”, explicou». Pobre criança, ainda não veio ao mundo e já foi obrigada a sacrifícios destes.

Elucida-nos ainda o Público: «No total, em 2009, está prevista a abertura de 11 novos espaços de grande dimensão, seguindo uma tendência já verificada em 2008 (ano em que abriram 13 conjuntos comerciais)».

Para ganhar coragem antes da tarde e noite de trabalho que ainda tinha pela frente, saboreei as primeiras sardinhas da temporada ao almoço (e bem boas elas estavam), emborquei uma imperial fresquinha e dirigi-me à Feira do Livro de Lisboa em plena canícula. Espero sinceramente voltar a lá meter os calcantes!