25 de outubro de 2007

No analisar é que está a questão

Entrados em Trancoso pelo Largo das Portas d'El-Rei, seguimos pela velha rua da Corredoura direitos ao pelourinho. Ir ao castelo não tem nada que saber - é subir pelas ruelas do centro histórico e chega-se lá num ápice.

Estávamos parados a contemplar a praça e a mirar o último sol da tarde a amarelar as paredes dos edifícios. Topava-se a milhas que éramos de fora e andávamos a passear. Pensando-nos desorientados, um solícito ancião ainda não tão ancião quanto isso, interpelou-nos:

- "Estão perdidos... Querem ir para onde?"
- "Não, não", respondi eu. "Estamos só a dar uma volta para depois ir até ao castelo."
- "Ah, então é por ali", indicou a personagem e simpaticamente deixou o aviso: "O castelo está fechado para obras, mas vão lá e analisem...".

Em terra alheia, os conselhos dos velhos sábios devem ser respeitados. Por isso, obecemos e lá fomos a analisar rua acima.

24 de outubro de 2007

O padre Costa de Trancoso

Trancoso é cidade apenas desde Dezembro de 2004, mas as suas muralhas graníticas escondem inúmeras lendas e histórias. Uma delas é a de um clérigo que viveu no século XV e terá gerado 299 filhos em 53 mulheres.

O padre Costa de Trancoso, livro da autoria do escritor e investigador Santos Costa, foi lançado no passado dia 1 de Outubro na cidade que viu nascer Gonçalo Anes Bandarra, sapateiro, poeta e profeta do mito sebastiânico.

A notícia é da Lusa, mas encontrei-a uns dias mais tarde no Correio do Minho, de Braga. E merecer ser partilhada.

A obra mistura factos históricos com ficção, aludindo à figura do padre Francisco Costa, personalidade emblemática do burgo onde, em 1288, D. Dinis celebrou o seu casamento com D. Isabel de Aragão - depois de o ter feito por procuração em Barcelona - e que tem sido alvo de zombaria ao longo dos tempos.

De acordo com o autor, uma lenda antiga remete para aquela personagem, que terá vivido no reinado de D. João II (1481-1495) e tido quase três centenas de filhos - 214 do sexo masculino e 85 feminino -, gerados em mais de 50 mulheres, muitas das quais suas familiares directas.

Santos Costa conta que, segundo a lenda, o sacerdote terá dormido com 29 afilhadas, que deram à luz 97 raparigas e 37 rapazes, e não poupou nove comadres, a quem arranjou 38 machos e 18 fêmeas.

Acrescenta ainda que os relatos existentes referem ter feito, entre outras proezas, 29 filhos e cinco filhas a sete amas, somando ao extenso rol mais 28 descendentes (21 homens e sete mulheres) de duas pobres escravas.

A pujança e as aventuras libidinosas terão incluído igualmente uma tia, de quem teve três rebentos, e nem a própria mãe lhe escapou, imagine-se, chocadeira de duas crianças - irmãs de seu próprio pai.

Reza o mito que o prior terá sido julgado em 1487, com 62 anos, e condenado a ser "degredado de suas ordens e arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos, esquartejado o seu corpo e postos os quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo crime que foi arguido e que ele mesmo não contrariou" (a cópia da sentença encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo).

No entanto, apesar da violenta condenação, conta-se que D. João II lhe perdoou a morte e o mandou pôr em liberdade aos 17 dias do mês de Março do mesmo ano, com o fundamento de ajudar a povoar aquela região da Beira Alta.

Mais do que os singulares feitos do padre, elogio a capacidade parideira daquelas mulheres. Feitas as contas, passados seis séculos duvido que haja alguma pessoa naquela terra que não seja familiar uma da outra. Está explicada muita da vocação amalucada deste povo.

18 de outubro de 2007

Guia das Pousadas de Juventude, parte 2

(Continuação de Guia das Pousadas de Juventude, parte 1)

Ponte de Lima - Banhada pelo rio que lhe dá o nome, Ponte de Lima dispõe desde Agosto de 2003 de uma moderna e arrojada Pousada de Juventude. De linhas arquitectónicas rectas e construção em betão à vista, digamos assim, situa-se junto à estrada que liga a localidade a Viana do Castelo e foi a primeira a dispor de sala de convívio infantil, com equipamento pedagógico e lúdico - mais uma prova de que o conceito mudou nos últimos anos.

Tem apenas quatro quartos duplos com casa de banho e como cheguei sem reserva estavam todos ocupados. Hesitante, depois da má experiência de Vila Real, o meu receio desvaneceu-se logo a seguir. Os WC comuns são um mimo, amplos e limpinhos, e a excelente vista para a serra de Arga das enormes janelas, a toda a largura do quarto, minimizou o facto de não haver casa de banho.

Vilarinho das Furnas - A paisagem e o silêncio, apenas interrompidos pelos sons da natureza, notam-se logo nos primeiros instantes. Não há dúvida: estamos no meio de uma imensa mancha verde, de montanhas e vales profundos, que assustam os mais afoitos.

Fechada em Setembro de 2006 para receber obras de beneficiação, reabriu em Maio deste ano de cara lavada e decoração sóbria e toda da Area, a loja que tomou o lugar da Habitat. Com quase 200 camas, é a maior da rede de Pousadas da Juventude. Tem 22 quartos duplos com casa de banho, todos situados no edifício central - os múltiplos são isolados.

Quanto aos duplos, existem algumas advertências a fazer para quem os quiser visitar futuramente. Desde logo, o facto de as paredes interiores dos quartos serem em contraplacado faz com que se ouça perfeitamente tudo o que se passa do outro lado. Aviso feito para despudoradas práticas sexuais e flatulentas.

Os quartos estão numerados de 1 a 11 nos dois pisos, mas até ao 6 (inclusive) ficam virados para a parte de trás da pousada, cuja vista é menos simpática, enquanto dos outros vislumbra-se a suave aridez da montanha. Ainda em relação a estes, os primeiros logo à direita no corredor - 11 e 21 - são os únicos cujas camas não ficam paredes meias outro quarto - nos 7/8 e 9/10 dorme-se com a cabeça encostada ao vizinho. De resto, pouco ou nada há a apontar.

Melgaço - A Pousada da Juventude de Melgaço abriu as portas em Abril deste ano e é uma das mais recentes da rede. Fica nos arredores da cidade, mas é um luxo e tem classificação máxima. De traça linear, fica situada no recente Complexo Desportivo do Prado, que inclui estádio, relvado sintético, piscinas, ginásios, hotel, restaurante, tudo isto no meio dum pinhal.

Foi na escassa, mas honesta, biblioteca da sala de convívio que voltei a encontrar o livro Antologia, com extractos do Diário de Miguel Torga relativos a Terras de Bouro. Trata-se de uma edição de autor da Câmara Municipal feita pouco depois da morte do escritor, em 1996, e tinha-o visto a primeira vez na loja do Museu Etnográfico de Vilarinho das Furnas, ou da Furna, melhor dizendo. Para meu desgosto não estava à venda, mas nessa noite dormiu comigo no quarto.

Clicar aqui para saber mais informações sobre as Pousadas da Juventude.

12 de outubro de 2007

Guia das Pousadas de Juventude, parte 1

Longe vão os tempos em que era frequentador das Pousadas de Juventude. Entre essa altura e hoje, fui acompanhando de longe a expansão da rede de turismo juvenil. O facto de saber que a de Lisboa, situada na Rua Andrade Corvo, esteve fechada durante muito tempo, para receber obras de beneficiação, foi talvez um dos poucos pontos de contacto neste interregno.

Findos os trabalhos, o local, sito num prédio antigo, reabriu completamente renovado e passou a ter a classificação de cinco pinheiros, o símbolo que identifica estes poisos para adolescentes. Entretanto, a capital conta com mais uma localizada no Parque das Nações.

Dizia-me a responsável de uma das pousadas visitadas - e que abaixo enumero - que o público-alvo alargou-se, de modo a fazer face à imensa e feroz concorrência. Por isso, as pousadas, além de terem condições de poderem ser utilizadas por pessoas de qualquer idade, já não são apenas dirigidas aos jovens com pouco dinheiro no bolso, ainda que os preços sejam, realmente, bastante convidativos.

Tirando a pensão no centro histórico de Miranda do Douro e uma das casas do Parque Natural de Montesinho, a jornada levou-me a conhecer as Pousadas da Juventude de Foz Côa, Bragança, Vila Real, Guimarães, Ponte de Lima, Vilarinho das Furnas (Gerês) e Melgaço. Segue-se o guia, por ordem de utilização, útil para futuras visitas.

Avisos prévios: em quase todas as cidades existem placas a indicar a direcção das pousadas, os pequenos-almoços são iguais em todas elas e os quartos duplos não têm camas de casal.

Foz Côa - Inaugurada em 1999, fica longe do centro e por isso quem não tiver automóvel fica apeado nos confins do burgo. No entanto, o facto de estar na periferia faz com que tenha soberbas vistas sobre o vale. A merecer nova visita, até porque os planos de visitar o Parque Arqueológico saíram furados - tal como nos museus, segunda-feira é dia sagrado de descanso para olhar de perto as gravuras rupestres.

Bragança - Tal como a de Foz Côa, também esta fica ligeiramente afastada do centro e da bela cidadela. Está incluída numa zona animada durante o dia - ao lado de instituições estudantis e perto do hospital -, mas à noite mergulha na escuridão e obscuridade. É recente e parece um hotel.

Um autêntico luxo, pois das visitadas nesta viagem esta foi a única a disponibilizar televisão no quarto, com Sport TV e tudo. Vi e vibrei com o Portugal-Roménia, do Mundial de râguebi, antes de degustar um saboroso manjar dos deuses n'O Manel: ossinhos de porco à transmontana. Divinal!

Vila Real - Foi difícil dar com a coisa, uma vez que aquilo, o prédio, é tudo menos uma pousada. À chegada, a simpática recepcionista informa que os quartos duplos com casa de banho estão todos ocupados e a única possibilidade é dormir nos sem WC. O local é decrépito, de fugir. As portas dos quartos têm janelas de vidro fosco, o que, como as luzes do corredor ficam sempre acesas, não dá jeito nenhum para dormir às escuras.

Paira um cheiro nauseabundo e abafado por todo o lado. Lavar as mãos e os dentes nas casas de banho comuns foram as minhas únicas ablações nocturnas. Andei a fazer tempo à noite para chegar e ir direitinho para a cama. Na manhã seguinte, emborquei o pequeno-almoço num trago e fugi dali a todo o gás, sem tomar banho nem nada...

Guimarães - Se utilizei termos como hotel e luxo para descrever a pousada de Bragança, que dizer da de Guimarães? Situada na antiga zona industrial de Couros, junto à ribeira com o mesmo nome e pertinho do lindíssimo centro histórico, ocupa um edifício antigo todo em granito e chão de madeira, recuperado a preceito. Tem elevador, mas pouco espaço para estacionamento.

Mal entro no quarto, fico espantado com o facto de a bonita roupa de cama e a cortina do duche trazerem estampadas Agatha Ruiz de la Prada (fotografia que ilustra este texto). Outro nível. E ficar numas águas furtadas no segundo andar tem o seu encanto.

O bom gosto e sobriedade imperam, de facto, em cada recanto deste lugar inaugurado em Junho de 2004, por alturas do saudoso Euro'2004, que também passou pela cidade-berço da nação. Possui uma sala de convívio enorme com ecrã plasma a condizer e Sport TV entre os canais disponíveis.

Foi lá que vi o Benfica-Sporting. Pena os falhanços do Nuno Gomes e Óscar Cardozo que deixaram o resultado num empate sem golos e, muito pior, o facto de a máquina de tirar imperiais estar avariada. É que senão tinha sido mesmo o descalabro.

(Continua...)

10 de outubro de 2007

Um Reino Maravilhoso

Antes de contar alguns episódios da viagem por Trás-os-Montes e Minho, deixo uma advertência. Não vou sozinho. Acompanha-me o escritor Miguel Torga, transmontano de nascimento e minhoto por adopção, vulto maior das letras portugueses e tantas vezes incompreendido.

A primeira prosa é um excerto de Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes), divulgado pela primeira vez numa conferência em 1941 e publicado nove anos depois num volume a que chamou Portugal, no qual disserta sobre regiões e lugares desta «nesga de terra debruada de mar», como escreveu num poema.

«Vou falar-lhes dum Reino Maravilhoso. Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade e o coração, depois, não hesite. Ora, o que pretendo mostrar, meu e de todos os que queiram merecê-lo, não só existe como é dos mais belos que se possam imaginar.

Começa logo porque fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos. E quem namora ninhos cá de baixo, se realmente é rapaz e não tem medo das alturas, depois de trepar e atingir a crista do sonho, contempla a própria bem-aventurança.

Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente, rasga a espessura do silêncio uma voz de franqueza desembainhada:
- Para cá do Marão, mandam os que cá estão!...

Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?
Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena:
- Entre!
A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso. (...)»

9 de outubro de 2007

O Che passou por Ponte de Lima

Não sou muito dado a assinalar datas, mas de vez em quando abro uma excepção.

Passam hoje 40 anos sobre a morte do revolucionário cubano - mas argentino de nascimento - Ernesto Che Guevara, El Comandante, e vem bem a propósito a fotografia que ilustra este texto, tirada à porta de um bar, em Ponte de Lima, durante o recente périplo por Trás-os-Montes e Minho.

Li há uns tempos uma entrevista do escritor Baptista Bastos, por ocasião do lançamento do seu mais recente livro, As Bicicletas em Setembro, na qual dizia, algo desencantado, que «as pessoas viajam para tirar fotografias. A esmagadora maioria não viaja para ver como são as outras».

Em certa medida concordo com ele, embora seja preciso encontrar o equilíbrio, como em tudo nesta vida. Há que ver com o coração, sentir com os olhos, ir ao encontro das pessoas, meter conversa. É precisamente de gentes, lugares e sabores minhoto e do nordeste que vos vou falar nos próximos tempos.