30 de janeiro de 2009

Fina pena

XI

Não logrou abafar o grito que lhe subia à garganta e, ao mesmo tempo que ouvia o som rouco de angústia da sua alma, sentiu o corpo da mulher estremecer sob o seu e gemer, não de gozo, mas de dor e medo, que se espelhavam nos seus olhos, agora abertos, a mirá-lo na fraca luz da candeia acesa.

Apercebeu-se de a ter magoado pela violência com que lhe tomara o corpo, na última noite, apalpando-lhe os seios e as nádegas, mordendo-lhe os mamilos e os lábios até ao sangue, para nele afogar as dolorosas recordações que não cessavam de o atormentar, e retirou-se bruscamente de dentro dela, para lhe evitar o olhar. Estendeu-se de costas, a seu lado, deixando todavia a mão pousada no seu corpo que ela já não cobriu com o lençol, como fazia outrora nos primeiros tempos de casados, mesmo estando às escuras, por pejo e modéstia, virtudes que ele a pouco e pouco fora conquistando e derribando, até não haver mais barreiras para os seus olhos e as suas mãos, nem para os jogos de amor.

― Tratais-me como se fora vossa barregã e não vossa esposa… e eu já tive de mentir ao meu padre confessor! ― barafustava com zanga na voz, mas que o riso desmentia, sempre que ele a abraçava em qualquer quarto sem gente, enfiando-lhe as mãos por baixo das saias e do corpinho, ou quando, de noite, lhe arrancava a camisa e se ajoelhava junto do leito, de candeia acesa na mão, a admirar-lhe o corpo de menina que mal acabara de se fazer mulher, mas cuja perfeição o enfeitiçava a ponto de lhe fazer esquecer os malogros da sua vida.

― Um marido não pode olhar e amar à sua guisa o corpo da esposa? ― perguntara-lhe um dia, acariciando-a, atiçando-lhe os zelos, por zombaria: ― Ou deverá guardar esses prazeres apenas para as suas escravas e barregãs?

Depois de regressar da sua viagem ao cabo de África e cansado de esperar pela missão ao Oriente que não havia meio de chegar, decidira desposar a sua gentil prima e constituir família, união bem aceite não só na terra como nos Céus, pois fora abençoada com dois belos filhos varões. Tardara, todavia, a ajustar-se à vida tranquila das gentes de terra, confrontado por toda a sorte de constrangimentos e defesos que os bons costumes, reforçados pela censura de Igreja, lhe impunham e dos quais o ter muito visto e a constante presença da morte o haviam libertado, a ponto de causar escândalo à sua própria família.

― Por mim, não hajais empacho, meu senhor ― replicara, assanhada e num tom nada respeitoso, apesar do tratamento que lhe dera ―, se a tal vos avezaram as negras cafras que levastes na vossa viagem de descobrir…

Deixara-a só e em lágrimas, desarvorando porta fora, esmagado pelas recordações que a muito custo lograra enterrar nos escaninhos da sua alma. A história das escravas que transportara na caravela para lançar nos lugares novamente descobertos era um assunto tabu (palavra que elas lhe tinham ensinado) de que nunca falava e, se o não pudesse evitar, limitava-se a dar a versão contida no relatório entregue a el-rei D. João II.

Nessa noite, regressara a casa bem tarde e, ao entrar no quarto, achara a esposa deitada, mas desperta e… com a candeia acesa. “Deixai estar a luz” rogara baixinho, com os olhos inchados de pranto, quando ele se deitara a seu lado. Estava nua e amara-o pela primeira vez com o ardor e a raiva de ciosa amante.

― Sofala… em que lugar está?
A voz sossegada despertou-o bruscamente e ele apoiou-se num cotovelo para lhe ver o rosto, suavizado pela ternura, mas os seu olhos tinham perdido o brilho da alegria.
― É no reino do Monomotapa, na costa oriental da África.
― Depois do Cabo das Tormentas…
A voz quebrou-se-lhe num soluço, de pronto sufocado, e ele ralhou-lhe com doçura, para lhe desanuviar a tristeza:
― Cabo da Boa Esperança, queres tu dizer, mulher! Assi foi registado no Padrão Real e copiado para as novas cartas de marear.

Amaldiçoou-se intimamente por nem na cama com a mulher deixar de pensar na cópia do padrão que acabava de ser roubada e já devia ir a caminho de algum cobiçoso reino ou ducado além-fronteiras. Buscou desanuviar o espírito com um jogo:
― Vou mostrar-te onde fica Sofala, numa carta secreta que só eu possuo e é mais preciosa do que todas as que o próprio [Pedro Álvares] Cabral leva na sua nau capitoa.
― Uma carta de marear secreta? Onde…
― Não te mexas!

Olhou o corpo da mulher como se o quisesse gravar para sempre na memória, maravilhado de ver quem nem a prenhez ou os partos, nem mesmo o desmancho que sofrera, o tinham deformado. Pelo contrário, a maternidade fizera desabrochar o seu corpo, arredondando-lhe as formas ao modo das deusas pagãs. Com o dedo esticado, desenhou-lhe sobre a pele lisa e macia, logo acima dos seios, uma linha direita.

― Aqui fica o Norte de África, Marrocos e os montes do Atlas…
Ouviu-a rir e o seu dedo seguiu minuciosamente a curva do seio, sentindo-lhe o arrepio à flor da pele, aflorou a auréola rosada e o mamilo endureceu e fez-se rubro como um bago de romã.

― Aqui Mazagão… ― sussurrou e o seu indicador contornou o seio voluptuoso ― a curva do Cabo Bojador, a Guiné… e estes sinais, as ilhas de Cabo Verde onde se faz a aguada ― poisou os lábios sobre as minúsculas manchas e prosseguiu, iniciando a descida para a linha da cintura: ― aqui a [São Jorge da] Mina…
― Já estiveste em todos esses sítios! ― riu-se de novo, com malícia.

O dedo completou a curva, flectindo para a linha do ventre e a mulher contorceu-se numa crispação de cócegas.
― Agora a derrota [termo que significa: rumo que seguem os navios; rota; percurso; viagem; itinerário] de Diogo Cão… as terras de Manicongo… aqui a Serra Parda ― os seus lábios pousaram no umbigo ―, onde dei começo às minhas descobertas… a terra de Santa Bárbara, o Golfo de S. Tomé… e mais abaixo a Angra das Voltas, lugar do meu primeiro padrão…

A voz tremeu-lhe e a mão afagou o triângulo macio entre as suas pernas e dos lábios da mulher soltou-se um profundo suspiro.
― E aqui dobrei eu pela primeira vez este teu Cabo das Tormentas…

As coxas, unindo-se num espasmo de desejo, aprisionaram-lhe os dedos na concha do ventre e ele deixou-se tombar sobre o seu corpo para a possuir de novo com o desespero de quem teme perder um bem precioso ou busca o olvido de uma culpa pungente que jamais cessara de o atormentar.

O Navegador da Passagem, de Deana Barroqueiro

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