29 de outubro de 2009

Nós pelos outros

Numa cena do tocante filme Séraphine, de Martin Provost – cujo tema versa o extraordinário percurso de vida de Séraphine de Senlis (1864-1942) desde dona de casa até se transformar em pintora e mergulhar na loucura –, a protagonista, depois de ver o seu trabalho descoberto pelo coleccionador e crítico de arte alemão Wilhelm Uhde, pergunta ao mecenas para quando a prometida exposição em Paris dos seus quadros.

Perante pragmática Séraphine, alienada de qualquer informação sobre o que acontecia no mundo para além do alcance dos seus olhos, Uhde – o primeiro a reunir obras de uns tais Pablo Picasso e Henri Rousseau –, responde cabisbaixo que rebentou uma crise financeira nos Estados Unidos. Adianta estar a chegar à Europa, de maneira que não será aquele o momento mais indicado para tal aventura, pois nesta altura os compradores de arte estão retraídos e talvez seja melhor esperar algum tempo para ver o que acontece. Uhde referia-se à Grande Depressão, período de recessão económica iniciada pelo colapso do mercado de acções da Bolsa de Valores de Nova Iorque em Outubro de 1929, precisamente há 80 anos.

Entretanto, a crise parece ter voltado no século XXI à escala planetária e com os mesmo heróis. Atrelados à Europa e vulneráveis ao que se passa nos Estados Unidos, "cá se vai andando com a cabeça entre as orelhas" a ver, impávidos e serenos, o Estado a avalizar pedidos de empréstimo dos bancos e financeiros prevaricadores. Atentemos numa passagem de um pequeno volume ao qual estou a deitar os olhos a vulso. Em 1879, Maria Rattazzi, aristocrata nascida na Irlanda mas de origem gaulesa, publicou Portugal a Vol d'Oiseau. Portugais et Portugaises (Portugal de Relance, na tradução da Antígona), um livro "delicioso" sobre Portugal, nas palavras de Antero de Quental, depois de "dois Invernos passados a desfrutar os literatos de Lisboa".

Nessa carta enviada ao amigo João Lobo de Moura, Antero acrescenta: "Imagine uma parisiense descrevendo ao vivo estes mirmidões!". A dita publicação, como é de imaginar, descandeou as mais variadas reacções nas almas lusitanas e, entre seguidores e contras, ficaram famosas as querelas epistolares da dama com Camilo Castelo Branco, cuja obra Senhora Rattazzi (1880) surge em resposta ao atrevido postulado da ingrata visitante e foi recentemente reeditada pela Calçada das Letras em versão fac-similada.

Provavelmente, muita da informação de que dispunha Rattazzi para esmiucar os portugueses de então foi-lhe passada por alguém próximo, mas, por muito enviesada que lhe chegasse aos ouvidos ou aos olhos, o que referiu há 130 anos não deixa de estar surpreendente actual. Tal como, aliás, no palavreado corrosivo de Eça de Queirós:

(...) «Por fim do ano de 1878, o Banco Ultramarino expiou (…) as leviandades de uma péssima administração e de o abuso de um guarda-livros, de um exército de empregados e de directores que meteram a mão nas algibeiras. No dia imediato ao do desastre, o tesouro público punha à disposição do Banco Ultramarino a soma de dois milhões de francos, o dobro dos desvios de fundos. (…)

Porquê?... Por que razão?... Como é que os dinheiros do Estado têm que ver com os dinheiros dos accionistas, de entre os quais alguns grandes e minúsculos empregados são uns gatunos? E com que direito aqueles que administram os dinheiros públicos, aos quais as cortes consignaram destino especial, podem aplicá-los em socorrer um banco em falência?...». (...)

Lapidar, não?

2 comentários:

Tiago disse...

O que é demasiado simples normalmente não é verdadeiro. Se não fosses em socorro dos gatunos, o mexilhão lixava-se ainda mais. O texto é muito bom, de qualquer modo.

José Nuno Pimentel disse...

O capitalismo nunca fez é bem a ninguém! Viva a anarquia organizada... :o)