12 de maio de 2009

A real feiura

Quando Francisco de Goya y Lucientes retratou A Família de Carlos IV em 1800, pouco tempo depois de ter sido nomeado pintor real da corte de Espanha, certamente estava longe de pensar que, em pouco tempo, aquele pomposo rapazola vestido de azul que aparece em primeiro plano do lado esquerdo, Fernando VII, iria passar de herói aclamado e desejado pelo povo a monarca absolutista, repressor cruel dos movimentos liberais.

Chegou ao poder em 1808, ano em que começou a Guerra da Independência contra a França de Napoleão e na sequência da abdicação forçada de seu pai. Por esta altura, do outro lado da fronteira, em Portugal, também se combatia a tropa imperial tricolor, mas a monarquia toda zarpara já para o Brasil, deixando os gauleses literalmente “a ver navios”, expressão tornada conhecida pelo facto de o general Junot, estratega da primeira invasão francesa em solo pátrio, ter entrado em Lisboa quando a soberba frota lusitana navegava ainda as águas do Tejo em direcção a Terras de Vera Cruz.

Nenhum monarca europeu tinha alguma vez pisado outro território que não o Velho Continente, quanto mais governar à distância, mas, no meio de outros factores igualmente importantes, a fuga da realeza, ainda assim, terá contribuído decisivamente para a manutenção da independência da coroa portuguesa. Entre os fugitivos régios contava-se a infanta espanhola Carlota Joaquina e que se pode ver de perfil, escondida, apenas com a face esquerda da cara à mostra e do lado oposto ao próprio Goya – cujo aparecimento atrás à esquerda, junto da enorme tela, contém clara referência a outro famoso quadro presente no Museu do Prado, em Madrid, As Meninas, de Diego Velásquez, pintor que, aliás, muito admirava.

Filha de María Luisa de Parma, figura central do quadro – o que sugere ser ela a verdadeira líder do reino vizinho, e não o seu marido –, a então Rainha de Portugal, por casamento com D. João VI, tinha nessa altura 25 anos e, tal como a sua mãe, a beleza não era o seu forte. Abundam as descrições: «Megera horrenda e desdentada, criatura devassa e abominável em cujas veias corria toda a podridão do sangue Bourbon, viciado por três séculos de casamentos contra a natureza», segundo o historiador Oliveira Martins; «ossuda, com uma espádua acentuadamente mais alta do que a outra, uns olhos miúdos, a pele grossa que as marcas das bexigas [assim do tipo da cara do Bryan Adams] ainda faziam mais áspera, o nariz avermelhado. E pequena, quase anã… Alma ardente, ambiciosa, inquieta, sulcada de paixões, sem escrúpulos e com os impulsos do sexo alvoroçados», noutra descrição.

E ainda: «Olhos pequenos e desiguais. Nariz quase sempre inchado e vermelho. Boca guarnecida de maus dentes, uns enegrecidos, outros amarelos, dispostos obliquamente. Pele áspera e curtida. Para cúmulo da feiura, tinha sempre espinhas em supuração. Os braços, que usava nus, eram chatos, ossudos e, acima de tudo, muito cabeludos». Tudo isto não a impediu de ter bastantes amantes, mas, claro está, era a rainha e nada se nega a sua majestade, mesmo que putativa, ou reputada puta.

Numa cena do filme Os Fantasmas de Goya (2006), de Milos Forman, que aborda esta parte da vida do artista e no qual Javier Bardem tem mais um desempenho notável – embora não vista a pele do pintor espanhol, interpretado por Stellan Skarsgård –, Goya aparece a dada altura a fazer o retrato a cavalo da altiva María Luisa, progenitora de Carlota, ou melhor, num suporte de madeira a imitá-lo.
– Como quer que monte?, pergunta a rainha.
– Como deseja ser lembrada pela História?, devolve o mago do pincel.
– Assim, tal qual como sou: jovem e bela!

Mais à frente na película, quando Goya destapa finalmente a tela em ocasião solene perante Carlos IV e María Luisa, a reacção dos soberanos é sintomática – abandonam imediatamente a sala indignados e sem tecer qualquer comentário. Como se pode averiguar tanto em cima como ao lado, aqueles eram precisamente dois dos atributos em avantajada míngua na real senhora e pintura não faz milagres.

Isto lembrou-me também aquela anedota, algo machista mas com piada, em que o marido chega à noite a casa complemente emborrachado, depois de uma noitada de copos com os amigos e, num assomo de sinceridade provocado pelo excesso de álcool no sangue, diz para a mulher:
- Xi… Tu és mesmo muito feia!
- E tu estás perdido de bêbado, riposta ela.
- Ah, mas a mim amanhã passa-me…

Bom, tudo isto para dizer que, ao vivo e a cores, como tive a oportunidade e a felicidade de comprovar, os quadros – há muitos outros portentosos, de autores diversos e fora do tema retratista – são simplesmente magníficos!

Nota: As descrições da Carlota Joaquina foram retiradas do excelente e didáctico livro Frases que Fizeram a História de Portugal, da autoria de Ferreira Fernandes e João Ferreira, A Esfera dos Livros, 2006

1 comentário:

Tiago disse...

Ah cronista!