19 de março de 2009

A odisseia do trono no Odisseia, parte 1

Cerca de 2,6 mil milhões de pessoas não tem acesso a instalações sanitárias, enquanto os outros dois terços da população do planeta vivem como monarcas, porque possuir uma sanita em casa é quase como ter um trono.

Os solícitos designers quebraram a monotonia da simples ida aos lavados com o fabrico de uma multiplicidade de projectos, cada um deles ornamentado por um assento real único. A casa de banho pode ser a jóia da coroa das nossas casas, mas ainda constitui tabu para muita gente.

A revolução nas instalações sanitárias foi sempre conduzida pela elite, pelo que, nestes assuntos de cocós e segundo David Inglis, sociólogo da Universidade de Aberdeen, na Escócia, são sempre as classes mais baixas a seguirem as altas em termos de inovações relacionadas com assuntos de merda. Agora compreendo melhor por que razão andavam noutro dia uns pés descalços maltrapilhos a espiar várias vivendas da Quinta da Marinha, em Cascais.

Antoine Jullien, designer que também faz retretes, refere que "tem de haver uma sensação de bem-estar, temos de sentir algo quando entramos neste espaço. O meu desejo é que as pessoas que gozaram um dos espaços projectados por mim guardem uma memória agradável da sua visita". Tirando a vontade de cagar não estou bem a ver qual o outro sentimento a que se refere. Além disso, pelo preço de sentar as nádegas num trono feito por ele, acima dos 2000 euros, de certeza que cada deslocação ao assento se tornava inolvidável.

Nos Estados Unidos, Barney Smith, simpático canalizador reformado do Texas e por isso artista a tempo inteiro, possui uma garagem a que deu o pomposo nome de Barney Smith's Toilet Seat Art Museum e onde expõe mais de 800 tampos de sanita decorados por ele com as mais variadas coisas e sobre outros tantos assuntos: material dado pela Reserva Federal dos Estados Unidos que, segundo o octogenário quase nonagenário, vale um milhão de dólares, pedaços do muro de Berlim e do vaivém Challenger, que explodiu em 1986 por cima do Centro Espacial Kennedy, no Cabo Canaveral (Flórida), cinzas dum vulcão…

Outro artista de tampos, o belga Jean Lucien Guillaume, de Bruxelas, expõe as suas obras em conceituadas galerias e até fez uma parceria com a empresa OLFA, "L'un des leaders européens de la fabrication d'articles sanitaires. Innovation technique et diversité des décors", pode ler-se na página oficial da empresa na Internet.

Na Catalunha, qualquer presépio tem o seu El Caganer. É uma tradição do Natal da região tão enraizada que as pessoas já não o concebem sem ele. Trata-se de pequenos bonecos de barro, pintados à mão, que estão literalmente em posição cagativa de rabo à mostra e cujo montinho castanho os autores fazem questão de evidenciar. A explicação poderá ser esta: para se ter uma boa colheita é preciso fertilizar os campos com estrume e excrementos. Estas estátuas simbolizam a fecundação do presépio para o ano seguinte, tornando-o maior. Se este crescer, a família que escondeu o caganer verá também aumentar a sua riqueza e sorte.

Se aproveitarmos a promoção da página oficial, ficamos a saber que podemos comprar um caganer do Barack Obama ou da chanceler alemã Angela Merkel por 13,30 euros, em vez do preço habitual de 14.

Mas, ao que parece, a posição sentada a cagar é pouco natural para o homem, pois cria um ângulo entre o ânus e o recto, o que obriga os músculos a fazerem muita força e não permite a evacuação total da nossa matéria fecal. Isto poderá mesmo ser uma das causas dos nossos problemas intestinais, como a prisão de ventre. Antigamente cagávamos agachados, numa postura de relaxamento muscular. E não é isso que se pede? Depois vieram as sanitas e estragámos tudo.

Para nós ocidentais, o uso destas é uma questão cultural e estamos de tal forma habituados a sentarmo-nos que não concebemos outra forma de esvaziar o intestino grosso (a excepção talvez seja na tropa, como tive oportunidade de verificar quando a isso fui obrigado, felizmente por pouco tempo, onde apenas existem latrinas à moda antiga). E quando somos confrontados com hábitos de outras gentes sentimo-nos frequentemente incomodados e repugnados. Tínhamos tanto a aprender com a civilização oriental, o Japão, a China…

O filme ensina-nos igualmente o modo como devemos enterrar as nossas fezes quando nos dá o aperto no meio da natureza e não conseguimos evitar a rajada: devemos fazê-lo fora dos caminhos e abrir um buraco de 15 a 20 centímetros de profundidade com o tamanho que pretendemos – este ponto depende de pessoa para pessoa, por isso, se tiveram dúvidas, juntem as vossas últimas cagadas, pesem-nas e façam a média.

Não será preciso escavar muito, pois as melhores bactérias para decompor a matéria estão precisamente nos primeiros 15/20 centímetros do solo. Outras das hipóteses sugeridas é embrulhar bem as fezes (por exemplo em papel de prata) e levá-las connosco. Cabeça no ar como sou havia de ser lindo!

Para os ecologistas convictos está fora de questão o uso de papel higiénico – recomenda-se a utilização de pedras polidas, paus ou até pinhas. Antigamente a coisa ia com espátulas de madeiras ou folhas das árvores. O papel higiénico apenas surgiu no séc. XIX e, claro, foi inventado pelos americanos.

Gasta-se uma enormidade de papel higiénico neste planeta. Precisamente a pensar nisto, a indústria pegou no mais trivial deles, o branco de folha dupla, e transformou-o num produto de luxo às cores e destinado a um mercado de elite. Assim surgiu o portuguesíssimo Renova Black.

A publicidade da empresa é elucidativa:
Descubra o novo papel higiénico preto Renova: atreva-se a ser irreverente utilizando um produto na fronteira entre arte e decoração, o luxo e o mundano.
Produto ou objecto?
Descubra por si mesmo! Suavemente perfumado e com uma textura aveludada, dará um toque inconfundível à sua casa de banho.

O toque inconfundível de que falam não será só à casa de banho. Eu nunca experimentei, mas uma descrição destas deixa-me mesmo tentado.

O papel higiénico de luxo não é apenas um acessório e reflecte aspectos fundamentais da nossa sociedade. Se mostrarmos às pessoas que o temos na nossa casa de banho, damos a entender que possuímos classe e gosto refinado, embora nem uma nem outro impeçam de, aqui e acolá, os donos largarem indiscretas flatulências decididamente requintadas, tendo em conta o estrato social de quem as impeliu.

A excentricidade levou mesmo a Renova a criar a Gold Box, um distribuidor de papel no valor de 100 mil euros, para celebrar o primeiro milhão de rolos pretos vendidos. Por outro lado, um joalheiro francês fez um anel em ouro e pedras preciosas que representa uma sanita e está avaliado em 3500 euros. Mas o Japão, sempre na dianteira, foi mais longe que todos e produziu uma sanita verdadeiramente digna do traseiro de um monarca. Tem 26 quilos em ouro e vale a módica quantia de 375 mil euros.

4 comentários:

Tiago disse...

Grande texto. Estava a ser uma óptima leitura, mas vou ter de a interromper, porque, vá-se lá saber porquê, de repente deu-me uma irresistível vontade de cagar. Levo a bola comigo e depois retomo a coisa...

Garf disse...

Como uma conversa de m**** se pode tornar num pequeno momento de grande prazer. Tanto como começar o dia com uma evacuadela, sentado no trono, a ler a Visão.
Excelente texto, cheio de humor e, concerteza, de profunda pesquisa. (Ainda um dia gostava de conseguir escrever merdas destas...)

Anónimo disse...

A minha avó nunca me explicou essa dos 15/20 cm.. pois na tropa a coisa também não era fácil (16 meses) o que tornava as idas a casa verdadeiros muitos de prazer no wc e não só..., quanto ao texto... um primor... digamos que, tornas a conversa de m**** uma conversa de elite...

José Nuno Pimentel disse...

Muito agradecido a todos pelos elogios, mas eu apenas passei para, digamos, texto encadeado o conteúdo do documentário, e acrescentei algumas piadas e bocas... :-)