Já vai algo atrasado, mas ainda assim segue na mesma o postado.
O 3 de Maio de 1808 em Madrid: Os Fuzilamentos na Montanha do Príncipe Pío faz parte das 15 obras-primas do Museu do Prado (Madrid), entre as quais se encontram também As Meninas (Diego Velázquez), Homem com a Mão no Peito (El Greco) e O Jardim das Delícias (Hieronymus Bosch, ou simplesmente El Bosco para os espanhóis).
Está exposta mesmo ao lado de outra relativa ao mesmo tema – O 2 de Maio de 1808 em Madrid: A Luta com os Mamelucos. Em baixo, transcrevo alguns dos momentos finais da obra Um Dia de Cólera, de Arturo Pérez-Reverte. Em 285 páginas, aborda os acontecimentos desse fatídico dia, desde as primeiras horas de 2 de Maio à madrugada seguinte, numa excelente tradução de Helena Pitta e que assenta bem no quadro pintado pelo Goya. Mais informações sobre o livro e o assunto podem ser encontradas na página do livro na Internet – recomendo vivamente a quem ler o dito ou tiver interesse.
«(…) A chuva salpica tudo na escuridão. São quatro da manhã e ainda é noite cerrada. Diante do quartel do Prado Nuevo, num descampado da montanha do Príncipe Pío, duas lanternas postas no chão iluminam, na penumbra e à contraluz, um grupo numeroso de silhuetas agrupadas junto de um talude de terra e de uma cerca: quarenta e quatro homens manietados individualmente, aos pares ou em cordões de quatro ou cinco ligados a uma mesma corda. Com eles, entre o soldado dos Voluntários do Estado Manuel García e o bandarilheiro Gabriel López, o chispero [N. da T.: nome pelo qual eram conhecidos os moradores dos bairros altos de Madrid: Maravillas, San Antón, Barquillo] Juan Suárez observa com receio o pelotão de soldados franceses formados em três filas. São marinheiros da Guarda, disse García, que devido ao seu ofício conhece os uniformes. Cobertos com barretinas sem viseira, os Franceses trazem à cintura sabres de gala e protegem da chuva os fechos de pederneira. A luz das lanternas faz brilhar os capotes cinzentos, reluzentes de água.
– O que se passa? – pergunta Gabriel López, apavorado.
– Passa-se que se acabou – murmura, lúcido, o soldado Manuel García. Muitos se apercebem do que estás prestes a acontecer e caem de joelhos, suplicando, amaldiçoando ou rezando. Os erguem ao alto as mãos amarradas, apelando à piedade dos Franceses. Por entre o clamor das súplicas e maldições, Juan Suárez ouve um dos presos – único sacerdote entre eles – rezar em voz alta o Confiteor [Eu me confesso], seguido por algumas vozes trémulas. Outros, menos resignados, contorcem-se nas suas amarras e tentam investir contra os verdugos.
– Filhos da puta!... Gabachos [N. da T.: nome depreciativo pelo qual os Franceses eram conhecidos em Espanha] filhos da puta! Alguns guardas afastam presos, empurrando-os com as baionetas contra o talude e a cerca. Outros, nervosos com a gritaria, começam a disparar sobre os mais agitados. Ouvem-se descargas aqui e ali, e os clarões iluminam rostos irados, expressões desfiguradas pelo pânico ou pelo ódio. Começam a cair os homens, isolados ou num amontoado confuso. Ouve-se uma ordem em francês e a primeira fila de soldados com capotes cinzentos levanta ao mesmo tempo os fuzis, aponta, e uma descarga cerrada abate o primeiro grupo colocado diante da cerca.
– Estão a matar-nos!... A eles!... A eles! Alguns desesperados, muito poucos, atiram-se contra as baionetas francesas. Há quem tenha partido as cordas e levante os braços desafiadores, avance alguns passos ou tente fugir. A golpes de baioneta ou à coronhada, os guardas empurram outro grupos e os presos avançam às cegas, espavoridos, pisando corpos. Num instante, a segunda fila de capotes cinzentos substitui a primeira, ouve-se uma ordem, e um novo rosário de tiros, cujo resplendor se fragmenta e multiplica nas bátegas de chuva, salpica a cena. Caem mais homens a monte, ceifados de chofre gritos, insultos e súplicas. Agora os Franceses retrocedem um pouco para darem mais espaço, e ecoam os estampidos de uma terceira descarga, cujos clarões se reflectem, vermelhos, nos regueiros de sangue que correm sob os corpos caídos, misturando-se com a água no chão. Amarrado a Manuel García e Gabriel López, Juan Suárez, que foi empurrado contra o talude e obrigado a ajoelhar-se à coronhada e a ferroadas de baioneta, tropeça nos mortos e agonizantes, escorrega na lama e no sangue. Entre a chuva que lhe corre pela cara, olha atordoado para as silhuetas cinzentas que erguem de novo os fuzis, apontando. Teme de frio e de medo.
– Feu! (…)»
NAVEGADOR DA PASSAGEM - OS CAURIS
Há 3 meses
2 comentários:
Quero o dito para a semana que vem, vê lá se te despachas.
Há muito que o acabei...
Enviar um comentário