Na puerta del Sol estão reunidas dez mil pessoas e o gentio espalha-se pelas ruas próximas, desde Montera até à rede de San Luis, bem como pelas calles del Arenal, Mayor e Postas, enquanto grupos armados com bacamartes, garrotes e facas patrulham os arredores, alertando para qualquer presença francesa. Da janela de sacada da sua casa, no número 15 da calle de Valverde, na esquina com a calle Desengaño, Francisco Goya e Lucientes, aragonês de sessenta e dois anos de idade, membro da Real Academia de San Fernando e pintor da Casa Real com cinquenta mil reais de renda, olha para tudo com expressão melancólica.
Por duas vezes mandou embora a sua mulher, Josefa Bayeu, quando ela lhe pediu que baixasse a persiana e viesse para dentro. Em colete, com o colarinho da camisa aberta e os braços cruzados sobre o peito, um pouco inclinada a cabeça poderosa, o pintor mais famoso de Espanha permanece assomado, obstinado, contemplando o espectáculo que vê na rua. Dos gritos do gentio e dos disparos isolados, longínquos, chegam apenas aos seus ouvidos – surdos desde que uma doença os deteriorou há anos – alguns ruídos apagados que se confundem com os rumores do seu cérebro, sempre atormentado, tenso e vivo.
Goya está à varanda desde que, há pouco mais de uma hora, o jovem de dezoito anos León Ortega y Villa, seu discípulo, veio da sua casa da calle Cantarranas pedir-lhe licença para não ir ao estúdio. «Se calhar temos de fazer frente aos Franceses», disse ao pintor, aproximando-se do seu ouvido inválido e levantando muito a voz, como de costume, antes de se ir embora com um sorriso juvenil e heróico, próprio dos seus poucos anos, sem ceder aos rogos de Josefa Bayeu, que o recriminava por correr riscos sem se preocupar com a angústia da sua família.
― Tens mãe, León.
― E vergonha na cara, dona Josefa.
Excerto de
Um Dia de Cólera, de Arturo Pérez-Reverte (página 84), obra que fala das “vinte e quatro horas que mudaram o destino de Espanha. Heróis e cobardes, vítimas e verdugos, uma imensidão de nomes que a História apagou ou apenas reteve em listas de mortos e feridos ou relatórios militares. Todos esses homens e mulheres são autênticos e revivem nestas páginas o dia em que os seus gestos mudaram para sempre o destino de uma nação.
A 2 de Maio de 1808, Madrid foi cenário de uma revolução espontânea. O ressentimento gerado pela presença francesa intensificou-se e a população reagiu, por fim, aos abusos de que era alvo.
É a essa população que Pérez-Reverte dá voz em
Um Dia de Cólera. Um livro que não é ficção. Que não é um documento histórico. É, sim, uma história colectiva feita de pequenos e obscuros casos individuais. Uma história feita de luz e sombra. De pessoas que nada têm a perder e cuja união gera a cólera de que se fez uma revolução.»
Nota: Duzentos e um anos volvidos conto estar em Madrid para assinalar a efeméride e, finalmente, ver os quadros do Goya e de outros, visto tê-los falhado em anteriores visitas, isto exactamente no mesmo dia de outra peleja clássica na capital espanhola, entre Real Madrid e Barcelona, no campo de batalha do Santiago Bernabéu.